Após cinco anos a ver uma pessoa que se ama a sofrer, acamada - penso -, somos acometidos de uma sensação de imortalidade. A morte sabe ser sarcástica!
A minha avó Mafalda (mãe da minha mãe) esteve oito anos numa cama. Não a conheci. Partiu antes de eu chegar. Descrita como justa e gentil. O meu avô João Francisco (pai do meu pai) foi quando o meu pai tinha três anos. Descrito como belo, de olhos azuis àvidos e mesmo assim calmos como um mar tranquilo e transparente.
O meu avô Ângelo (pai da minha mãe), perdi-o com apenas cinco anos. Austero, apaixonado e só. Com apenas um ano de idade, imitava o meu avô, enquanto entregue às suas conjecturas, passeando para trás e para a frente no corredor da casa, de mãos colocadas atrás das costas. E ele sorria, divertido com a minha audácia. Embalava-me para eu adormecer, e escrevia durante longas horas, dando-me folhas e canetas para eu participar, com a minha escrita indecifrável e infantil. Um dia o meu pai foi-me buscar à escola, sentou-me ao seu colo, pegou na fotografia do meu avô e perguntou-me:
O meu avô Ângelo (pai da minha mãe), perdi-o com apenas cinco anos. Austero, apaixonado e só. Com apenas um ano de idade, imitava o meu avô, enquanto entregue às suas conjecturas, passeando para trás e para a frente no corredor da casa, de mãos colocadas atrás das costas. E ele sorria, divertido com a minha audácia. Embalava-me para eu adormecer, e escrevia durante longas horas, dando-me folhas e canetas para eu participar, com a minha escrita indecifrável e infantil. Um dia o meu pai foi-me buscar à escola, sentou-me ao seu colo, pegou na fotografia do meu avô e perguntou-me:
- Sabes quem é este, filha?
- É o avô Ângelo!
- Era Amor!
Percebi!
A minha avó Constantina (mãe do meu pai) era VIDA! Que corajoso sorriso! Lindo! A minha doce, de atentada felicidade velhinha, que sorriu sempre de coração revolto e em desespero, com o roubo da esperança.
Saudade é uma palavra tão vã, quando a recordo... um sentimento tão perdido, num vazio de vinte e dois anos. Quando tive a minha primeira grande zanga com o namorado aos dezanove anos, a Constantina não me quis ver chorar. Dançou, sorriu, e deitou a baixo uma garrafa de champagne, comigo, as duas, ao ponto de já só querermos rir. Doida adorável!
Cinco anos numa cama, o último sem sequer falar, sem uma perna, com uma sonda para a alimentação, gerou em mim uma noção de imortalidade de que não me conseguia descolar. Olhava os seus olhos ansiosos de paz e não conseguia sentir a capacidade de a deixar partir. Ela sabia que eu não estava preparada. Manteve-se...
Partiu, no hospital, com uma fatal pneumonia, sozinha, no dia 29 de Abril há 22 anos. Nada desfaz a dor durante tempos, até que ela adormece! Mas a falta, essa assalta-nos sempre, mesmo quando a escondemos e a calcamos bem para o fundo dos sentimentos, das hormonas desesperadas.
Não me conseguia libertar. Estava presa ao seu abraço, ainda, semanas depois. Sentia-me estrangulada, incapaz de recuperar o fôlego. Dormir era tão doloroso. Mas veio um sonho, que jamais esqueci, que jamais me abandonou...
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Abri os olhos e estava a pairar... muito acima das nuvens, que mal vislumbrava muito abaixo de mim. Envergava um longo e fluído vestido de musselina, em tons pastel, pano sobre pano, que tocava nas nuvens muito, muito distantes dos meus pés, com umas mangas infindáveis.
Em frente, dos lados, atrás e acima pendiam longos pedaços de musselina, dos mesmos tons do vestido, a perder de vista e que me impediam a visão para qualquer lado. Sentia-me claustrofóbica. Queria sair dali.
Tinha os braços presos na horizontal, como se tivesse sido crucificada; os pés pendiam, sobrepostos um sobre o outro. Queria gritar e não conseguia.
Levantou-se uma leve e suave brisa. Lentamente, ia-me gelando, sem eu poder fazer nada... Sentia o vestido a colar-se ao meu corpo, e o meu cabelo era levemente puxado para trás. Fechei os olhos e deixei-me levar pela brisa, que foi aquecendo, tornando-se agradável, já aconchegante... A minha cabeça pendia para trás, como se a brisa me estivesse a anestasiar, a hipnotizar. E eu queria que ela me continuasse a abraçar, que continuasse a vir ao meu encontro... Já nem me lembrava das dores nos braços... Só da brisa...
Comecei a deslocar-me em frente, involuntariamente. Sentia-me curiosa, mas calma... Os panos à minha frente desviavam-se e juntavam-se novamente depois de os passar. Sentia tudo isto, mas sem ver. A Brisa persistia, fazia-me festas por todo o corpo, fazendo-me sentir desejada e embalada. Ouvia em fundo a crescente exaltação de uma melodia conhecida... Return to Inocence...
Levei uma eternidade a deslizar em frente, sempre sob o mesmo poder, entregue às sensações. E repentinamente senti o ímpeto de abrir os olhos.
Vi, por detrás dos panos, ainda muito longe e disforme, uma mancha escura... A curiosidade aumentou, as minhas emoções alteraram-se e o meu coração acelerou. Os meus olhos abriam-se cada vez mais e conseguia ouvir o meu batimento cardíaco, cada vez mais forte, ao ritmo do insurgimento da mancha. Se antes não queria que tudo terminasse, agora estava ansiosa pelo fim...
A mancha ganhou contornos ovais... mais um pouco e um leve ondular na parte superior... uma boca surgiu, envolta por um sorriso acolhedor, familiar... os óculos da minha avó (que andavam na minha mala desde o dia em que ela partira) surgiram na frente da forma oval, que agora ganhava uma cor rosada. Contive a respiração com tanta força que me doeu o peito. O rosto da minha avó estava ali, à minha frente, gigantesco, caloroso, cheio de amor... O sorriso transformou-se em sopro e surgiram as primeiras palavras:
- Eu sou a brisa...
O rosto encolheu, ganhando um tamanho normal, e o corpo da minha avó ganhou contornos. Vinha na minha direcção, vestida como eu, de braços abertos tal como os meus... Deslizou para trás de mim. As suas mãos acolheram as minhas, ainda ambas de braços estendidos. Leve e lentamente os seus braços moldaram os meus num maravilhoso abraço, detendo-se sobre o meu peito acelerado. Sussurrou, junto ao meu ouvido...
- Eu sou o teu conforto. Eu sou o teu calor. Estarei sempre aqui...
Senti a mão da minha avó entrar no meu peito e tocar no meu coração, indicando-me onde ela estaria, eternamente. Suavemente, beijou-me o cabelo, e eu estreitei-lhe os braços contra mim, sentindo o seu cheiro, a sua aura de amor. Continuou...
- E estarei aqui! - referindo-se à minha memória. - Sorri sempre, meu Amor! O teu sorriso é a minha existência além da vida.
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A música parou e acordei sobressalta, incapaz de respirar. Chorei durante muito tempo. Um choro que me purificou, que me fez perceber que não havia retorno físico. E finalmente acreditei que a minha avó tinha partido, mas que me amaria sempre.
Fiquei com esta sensação de protecção eterna. Por pior que a vida esteja, o sorriso trás-me de volta e prevejo sempre algo de bom no amanhã, mesmo quando me sobressalto com a possibilidade de "hoje ser o último".
E sorriu, mesmo quando choro, porque é inevitável!
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