segunda-feira, 24 de junho de 2013

O AMOR...

Falar de Amor… Hum!

Estou aqui às voltas a tentar perceber o que dizer sobre “AMOR”. Visões diferentes de um mesmo  Estado…

Alguém apaixonado terá certamente uma visão diferente daquela outra pessoa que não o está. Quem sente que sofre ou sofreu por Amor terá certamente uma outra visão do Amor, diferente da de tantos outros.

No Amor culpamos o outro se não corre bem… O velho adágio “Água mole em pedra dura…” tem a sua verdade. Mas não absoluta, inalterável. A verdade é que nem sempre a pedra fura.

É verdade que não sou nenhuma especialista. Longe de mim! Sei de mim, e cada um de si. Mas tenho uma opinião: a minha.

Deixa-me baralhada o modo e a rapidez com que se começam e terminam as relações. Num dia (por assim dizer) ama-se tão perdidamente e no outro diz-se “Já não te amo!”  Amor é aquela coisa indescritível que se sente e pronto; que perdura; que existe sem porquês; que nos faz mover montanhas; que nos faz aspirar à imortalidade; que nos faz sentir saudade; desejo; encanto… O Amor faz-nos crescer, renascer, e ser criança, e tudo de novo; outra vez.

Não confundir com paixão, com enamoramento, com encantamento. Tenho essa teoria… A Paixão é escaldante e efémera (“Heartburn” – Meryl Streep and Jack Nicholson). O Amor é eterno, calmo, compreensivo, atento, protector (“Falling In Love” – Meryl Streep and Robert De Niro)… Logo, poucos têm o prazer de um Encontro com o Amor.

E ter a certeza que é Amor? Que é Paixão? Saber… Para sabermos bem algo, seja o que for, é preciso conhecer cada pormenor. E os pormenores, esses são quase infinitos… Logo, o nosso saber é sempre imperfeito e superficial.

Pensar com o coração: prós e contras. Tem os seus perigos. A sede de Amar e de se ser Amado… trás muitos perigos, muitas aprendizagens, muitos encontros e desencontros. É que Amar não é um jogo. Amar não é um passatempo. Amar não é um termo de interesses e vontades. Amar é, muito resumidamente, o outro, a face à nossa frente, o batimento do nosso coração noutra anatomia, o desejo inescrutável de existir para todo o sempre porque se deseja que o outro exista para todo o sempre – e que os dois nunca se separem. O Amor é intemporal.

Lembro-me de uma história, contada por um Padre, quando ainda me conseguiam arrastar para a igreja. Um sermão sobre o casamento, sobre o Amor…

Havia uma família muito pobre; tão pobre. O Pai, a Mãe, e cinco filhos. Uma família onde o Amor era o grande alimento, onde a comida escasseava, e o trabalho se multiplicava. Quando a mulher – uma dura trabalhadora, uma exemplar esposa, uma extremosa Mãe – teve o último bebé, ficou débil, frágil, incapaz da mesma força. Agora já não ia para os campos trabalhar com o marido, com as cinco crianças a reboque, os cinco filhos que não perdia de vista. Agora ela ficava em casa, a lavar a escassa roupa de toda a família, a lavar fraldas, a remendar roupa que tinha sempre um ou outro buraco, a inventar as refeições com os escassos ingredientes. Todos os dias preparava um farnel para o marido levar para os campos: um pedaço de pão, um resto de toucinho, um resto de linguiça cozida, uma mão-cheia de azeitonas, um punhado de batatas às rodelas fritas em banha, uma maçã, uma laranja, uma pêra, o que houvesse… o marido trabalhava arduamente. Quando o marido chegava para jantar, as crianças já estavam a dormir, depois de um bom prato de sopa – se havia carne para pôr sopa, era um milagre.

E ela dizia sempre que já tinha comido – sendo outra a verdade… E o marido via a mulher definhar de dia para dia, sabendo da sua pequena mentira, em prol dele e dos filhos.

Num ano de secas, seguido de grandes chuvas, o trabalho dos campos escasseou. Os patrões não tinham produtos para comercializar; o pouco que havia estava quase ao preço do ouro; e não havia dinheiro nem trabalho para a maioria dos trabalhadores. Não havia dinheiro; não havia comida.

Um dia de fim de verão, o homem saiu para as vindimas, apenas com um pedaço de pão seco para comer ao longo do dia. Luzia-lhe o olho, os cachos de uvas. Sabia o quanto a esposa as adorava. A tentação era grande. Queria guardar um cacho para lhe levar. Mas com o capataz ali perto… Ela estava tão doente! Se ela visse aquelas uvas!

E o capataz percebeu. E emocionou-se. Recolheu das cestas um exemplar cacho e entregou-lho.

- Toma. Guarda! Não digas nem mostres a ninguém!

Era meio-dia. Parou para comer o seu pedaço de pão, ciente do cacho de uvas dentro da marmita de alumínio, gasta. Mas não lhe tocou. Nem uma única uva tirou do cacho.

- Quantas vezes deixa ela de comer para que não falte a mim nem aos meninos. Hoje levo-lhe esta surpresa.

Guardou sigilosamente a marmita com o cacho. E no fim do dia caminhou, feliz, realizado, capacitado do seu lugar de chefe de família, honrado, imaginando o grande prazer que a esposa sentiria ao ver as uvas. Sentia-se um rei a levar um tesouro de valor incalculável à sua rainha, amada.

De tão rápido que andou chegou a casa ainda os filhos estavam acordados. Entrou, com um enorme sorriso a rasgar-lhe o rosto. E ela curiosa perguntou-lhe:

- O que aconteceu, homem?
- Isto!

Tirou o cacho e deu-lho. Os olhos da mulher iluminaram-se, bem como os dos filhos.

- Quantas vezes não comes mulher, para que não nos falte a nós?! Isto é para ti. Quero ver-te bem! Quero que recuperes a tua força, a tua alegria.

- Obrigada, homem! Hoje fiz um pouco de sopa. Chega para todos! E também as uvas chegarão. É suficiente para mim saber que me guardas no teu pensamento, mesmo quando estás longe…


sábado, 22 de junho de 2013

RASGAR PAPEL

A vida é tão estranhamente simples… Entre o nascer e o morrer sucedem-se centenas de episódios. Nenhuns deles pré-escritos. Escrevemos esses episódios com maior ou menor velocidade e clareza, consoante a necessidade, as condições oferecidas e produzidas… E todos eles se traduzem em diferentes sentimentos, que depois gerem a nossa forma de amar a vida.

Somos felizes? Talvez a felicidade tenha significados diferentes...

É sobre isso que me pergunto? O meu Pai está cansado. Adormeceu, ali no sofá, cansado…

Hoje o meu Pai queria ajudar! Queria ajudar a fazer “qualquer” coisa…

Meditando acerca da sua existência não consigo imaginar o quão vegetativa é, sem ele o estar. Porque a mim me falta por vezes a imaginação, a capacidade de inventar.

E hoje tive um rasgo de inspiração – sem falsas modéstias. O meu Pai pediu-me! O que é que eu posso dar ao meu Pai para fazer? Mal se mexe, não vê, o seu raciocínio está toldado pela doença, o que é que eu faço? Como é que eu lhe concedo este desejo?

Reciclar! 

Falámos sobre reciclar. Dei-lhe papel - revistas, jornais – para rasgar.

- No meu tempo queimávamos o papel numa fogueira, na praia.
- Mas hoje o papel é para reciclar, Pai. Do papel velho faz-se novo. Por isso não o podemos queimar. Rasgamos e mandamos para o centro de reciclagem para fazerem papel novo.

E o meu Pai rasgou papel, enquanto a minha Mãe descansou – foi ao cabeleireiro aqui mesmo à porta de casa, respirou e esqueceu durante duas horas o inferno das doenças. E agora o meu Pai dorme, feliz, cansado, útil. A minha Mãe descansa, ali ao lado, no seu sofá, com um sorriso nos lábios, porque hoje há felicidade.


quarta-feira, 12 de junho de 2013

A EUROPA E O CAOS

 Estará a Europa condenada à separação eterna de ideologias políticas e económicas?

Houve tempos em que se sonhou com uma Europa Única, gerida por uma uniformidade política, social e económica. Gerou-se uma esperança, após a Segunda Guerra Mundial que definia esse sonho de Europa, tal como definira Edmund Husserl na sua edição "Conferências de Paris" - 1929:

"Todo o principiante na filosofia conhece o notável percurso do pensamento das meditações. O seu objectivo é, como recordamos, uma plena reforma da filosofia, inclusive a de todas as ciências. Pois estas são apenas membros subalternos de uma ciência universal, a filosofia. Só na unidade sistemática desta podem elas chegar à autêntica racionalidade (...)."(1)



Sobre esta filosofia de unidade sistemática é que se ergueu a Europa pós Guerra, com o nascimento de instituições que se julgava serem capazes de ajudar este continente a tomar um novo rumo.

A União Europeia foi criada com o objectivo de pôr termo às frequentes guerras sangrentas entre países vizinhos, que culminaram na Segunda Guerra Mundial. A partir de 1950, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço começou a unir económica e politicamente os países europeus, tendo em vista assegurar uma paz duradora. Os seis países fundadores foram a Alemanha, a Bélgica, a França, a Itália, o Luxemburgo e os Países Baixos.

Os anos 50 ficaram denominados como os primeiros da Guerra Fria entre o bloco de Leste e o Ocidente. E ainda em 1957, o "Tratado de Roma" institui a Comunidade Económica Europeia (CEE) ou "Mercado Comum".(2)



Um dos países mais endividados com o colapso económico causado pela Segunda Guerra terá sido a Alemanha, a quem foi perdoada 50% da sua dívida através de um acordo assinado a 27 de Fevereiro de 1953. Entre os países que perdoaram essa dívida estiveram a Espanha, a Grécia e a Irlanda. Para o restante valor da dívida foi feito um reescalonamento, para ser pago num período de 30 anos. E só em Outubro de 1990, dois dias antes da reunificação das Alemanhas, é que o Governo emitiu obrigações para pagar a dívida contraída no período anterior à Guerra.

Uma parte fundamental deste acordo dizia que o pagamento da dívida deveria ser feito somente com o superavit da balança comercial. Simplificando, a Alemanha só era obrigada a pagar a dívida quando conseguisse um saldo de divisas através de um excedente na exportação, não sendo obrigada a utilizar as suas reservas cambiais, podendo ainda a Alemanha levantar barreiras unilaterais que a prejudicassem nas importações.

Hoje, pelo contrário, os países do Sul são obrigados a pagar o serviço das suas dívidas sem que sejam levados em conta os défices crónicos das suas balanças comerciais. A insolvência dos países do sul da Europa - Portugal, Espanha, Grécia, Itália, Irlanda e França -, parece ser hoje o maior flagelo da história da Europa, assim nos é apresentado pela UE sob o escudo de uma nova Alemanha, que se mostra intransigente quanto ao perdão de dívidas, arrastando os países europeus mais fragilizados para o seio de uma Europa novamente dividida.

O surgimento da Troika(3) que hoje conhecemos - Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional - veio abalar e fragilizar os países europeus mais endividados com planos de austeridade que marginalizam povos, deixando-os à mercê de planos de recuperação que jamais verão o seu fim.

Alguns destes países - Portugal, Itália, Grécia e Espanha (PIGS(4)) -, foram outrora as grandes potências mundiais, que definiram termos como Estado, Democracia, Cooperação, Comércio e Sociedade. Hoje são marginalizados, transformados numa espécie de países vagabundos, incapazes, desassociados de uma possível prosperidade e é-lhes imposta uma auteridade que rende os seus povos à incapacidade de erguer as suas cabeças, caminhando no sentido oposto ao da união com que outrora se sonhou. O que o plano de austeridade se nega a ver á o arrastar deste arrebatamento que vai minando e destruindo o espírito europeu.



Políticos "responsáveis" gabam-se da diversidade europeia, referindo-se às tradições culturais - consideradas "interessantes e enriquecedoras" - desenvolvidas fora das suas fronteiras nacionais. Louvam essas diferenças e insistem em que sejam preservadas. Contudo, é interessante constatar que qualquer tipo de entusiasmo e de tolerância desaparece dos seus espíritos quando surge o tema diversidade económica.



Todos os Estados-membros, incluindo os da zona euro, têm que cumprir exactamente as mesmas condições. O desempenho económico de cada país é ajustado aos mesmos critérios, dando-se pouquíssima importância ao facto de as tradições económicas europeias serem tão diferentes de uns países para outros.

A ideia de que todos temos que trabalhar segundo o mesmo modelo atingiu o seu limite. os países endividados adoptaram programas de reforma económica que supostamente, lhes trariam estabilidade, e que lhes foram impostos. Mas a verdade é que não conseguem atingir as metas. E as dívidas nacionais aumentam.

O problema é que na prática a estratégia não funciona. Durão Barroso acordou finalmente do coma quando admitiu que "Uma linha política não pode apenas ser válida, tendo também que ser aceite pelos cidadãos. Caso contrário não tem aplicabilidade."(5)

Quando até já a Alemanha, a maior economia europeia, começa a ressentir-se com os actuais planos de austeridade, algo tem mesmo que mudar. Assistimos verdadeiramente a um sonho perdido, com uma Europa à beira do precipício, moribunda e incapaz de se reerguer se continuar a caminhar sobre o mesmo trilho de leis e planos comuns. 

A Austeridade Europeia chegou a um impasse. A única solução é deixar a opinião dos povos ser ouvida. A única possibilidade é, talvez, algum tipo de perdão parcial, algum tipo de demonstração de respeito pelo individualismo nacional, algum tipo de respeito pela diversidade económica, e pelo ideal europeu.


(1) “Conferências de Paris”, Edmund Husserl, Página 5, Conferências de Paris (1929), Tradutores: Artur Morão e António Fidalgo
(2) União Europeia, “A História da União Europeia”, http://europa.eu/about-eu/eu-history/index_pt.htm
(3) Termo de origem russa que designa uma aliança de três personagens do mesmo nível e poder que se reúnem num esforço único para a gestão de uma entidade ou para completar uma missão (como o triunvirato histórico de Roma).
(4) Acrónimo que designa o grupo de países que entraram em recessão a partir de 2008, e cujas economias passaram a ser consideradas “lixo” (PIG = Porco) – PIGS (Portugal, Italy, Greece and Spain), ou PIIGS (Portugal, Italy, Ireland, Greece and Spain) ou por vezes PIIGGS (Portugal, Italy, Ireland, Greece, Great Britain and Spain).
(5) In, Presseurop, “Austeridade, uma estratégia falhada”, 24 de Abril de 2013

quinta-feira, 6 de junho de 2013

SONHOS



Após cinco anos a ver uma pessoa que se ama a sofrer, acamada - penso -,  somos acometidos de uma sensação de imortalidade. A morte sabe ser sarcástica! 

A minha avó Mafalda (mãe da minha mãe) esteve oito anos numa cama. Não a conheci. Partiu antes de eu chegar. Descrita como justa e gentil. O meu avô João Francisco (pai do meu pai) foi quando o meu pai tinha três anos. Descrito como belo, de olhos azuis àvidos e mesmo assim calmos como um mar tranquilo e transparente.

O meu avô Ângelo (pai da minha mãe), perdi-o com apenas cinco anos. Austero, apaixonado e só. Com apenas um ano de idade, imitava o meu avô, enquanto entregue às suas conjecturas, passeando para trás e para a frente no corredor da casa, de mãos colocadas atrás das costas. E ele sorria, divertido com a minha audácia. Embalava-me para eu adormecer, e escrevia durante longas horas, dando-me folhas e canetas para eu participar, com a minha escrita indecifrável e infantil. Um dia o meu pai foi-me buscar à escola, sentou-me ao seu colo, pegou na fotografia do meu avô e perguntou-me:

- Sabes quem é este, filha?

- É o avô Ângelo!

- Era Amor!

Percebi!

A minha avó Constantina (mãe do meu pai) era VIDA! Que corajoso sorriso! Lindo! A minha doce, de atentada felicidade velhinha, que sorriu sempre de coração revolto e em desespero, com o roubo da esperança.

Saudade é uma palavra tão vã, quando a recordo... um sentimento tão perdido, num vazio de vinte e dois anos. Quando tive a minha primeira grande zanga com o namorado aos dezanove anos, a Constantina não me quis ver chorar. Dançou, sorriu, e deitou a baixo uma garrafa de champagne, comigo, as duas, ao ponto de já só querermos rir. Doida adorável!

Cinco anos numa cama, o último sem sequer falar, sem uma perna, com uma sonda para a alimentação, gerou em mim uma noção de imortalidade de que não me conseguia descolar. Olhava os seus olhos ansiosos de paz e não conseguia sentir a capacidade de a deixar partir. Ela sabia que eu não estava preparada. Manteve-se... 

Partiu, no hospital, com uma fatal pneumonia, sozinha, no dia 29 de Abril há 22 anos. Nada desfaz a dor durante tempos, até que ela adormece! Mas a falta, essa assalta-nos sempre, mesmo quando a escondemos e a calcamos bem para o fundo dos sentimentos, das hormonas desesperadas.

Não me conseguia libertar. Estava presa ao seu abraço, ainda, semanas depois. Sentia-me estrangulada, incapaz de recuperar o fôlego. Dormir era tão doloroso. Mas veio um sonho, que jamais esqueci, que jamais me abandonou...




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Abri os olhos e estava a pairar... muito acima das nuvens, que mal vislumbrava muito abaixo de mim. Envergava um longo e fluído vestido de musselina, em tons pastel, pano sobre pano, que tocava nas nuvens muito, muito distantes dos meus pés, com umas mangas infindáveis.

Em frente, dos lados, atrás e acima pendiam longos pedaços de musselina, dos mesmos tons do vestido, a perder de vista e que me impediam a visão para qualquer lado. Sentia-me claustrofóbica. Queria sair dali.

Tinha os braços presos na horizontal, como se tivesse sido crucificada; os pés pendiam, sobrepostos um sobre o outro. Queria gritar e não conseguia.

Levantou-se uma leve e suave brisa. Lentamente, ia-me gelando, sem eu poder fazer nada... Sentia o vestido a colar-se ao meu corpo, e o meu cabelo era levemente puxado para trás. Fechei os olhos e deixei-me levar pela brisa, que foi aquecendo, tornando-se agradável, já aconchegante... A minha cabeça pendia para trás, como se a brisa me estivesse a anestasiar, a hipnotizar. E eu queria que ela me continuasse a abraçar, que continuasse a vir ao meu encontro... Já nem me lembrava das dores nos braços... Só da brisa...

Comecei a deslocar-me em frente, involuntariamente. Sentia-me curiosa, mas calma... Os panos à minha frente desviavam-se e juntavam-se novamente depois de os passar. Sentia tudo isto, mas sem ver. A Brisa persistia, fazia-me festas por todo o corpo, fazendo-me sentir desejada e embalada. Ouvia em fundo a crescente exaltação de uma melodia conhecida... Return to Inocence...

Levei uma eternidade a deslizar em frente, sempre sob o mesmo poder, entregue às sensações. E repentinamente senti o ímpeto de abrir os olhos. 

Vi, por detrás dos panos, ainda muito longe e disforme, uma mancha escura... A curiosidade aumentou, as minhas emoções alteraram-se e o meu coração acelerou. Os meus olhos abriam-se cada vez mais e conseguia ouvir o meu batimento cardíaco, cada vez mais forte, ao ritmo do insurgimento da mancha. Se antes não queria que tudo terminasse, agora estava ansiosa pelo fim...

A mancha ganhou contornos ovais... mais um pouco e um leve ondular na parte superior... uma boca surgiu, envolta por um sorriso acolhedor, familiar... os óculos da minha avó (que andavam na minha mala desde o dia em que ela partira) surgiram na frente da forma oval, que  agora ganhava uma cor rosada. Contive a respiração com tanta força que me doeu o peito. O rosto da minha avó estava ali, à minha frente, gigantesco, caloroso, cheio de amor... O sorriso transformou-se em sopro e surgiram as primeiras palavras:

- Eu sou a brisa...

O rosto encolheu, ganhando um tamanho normal, e o corpo da minha avó ganhou contornos. Vinha na minha direcção, vestida como eu, de braços abertos tal como os meus... Deslizou para trás de mim. As suas mãos acolheram as minhas, ainda ambas de braços estendidos. Leve e lentamente os seus braços moldaram os meus num maravilhoso abraço, detendo-se sobre o meu peito acelerado. Sussurrou, junto ao meu ouvido...

- Eu sou o teu conforto. Eu sou o teu calor. Estarei sempre aqui...

Senti a mão da minha avó entrar no meu peito e tocar no meu coração, indicando-me onde ela estaria, eternamente. Suavemente, beijou-me o cabelo, e eu estreitei-lhe os braços contra mim, sentindo o seu cheiro, a sua aura de amor. Continuou...

- E estarei aqui! - referindo-se à minha memória. - Sorri sempre, meu Amor! O teu sorriso é a minha existência além da vida.

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A música parou e acordei sobressalta, incapaz de respirar. Chorei durante muito tempo. Um choro que me purificou, que me fez perceber que não havia retorno físico. E finalmente acreditei que a minha avó tinha partido, mas que me amaria sempre. 

Fiquei com esta sensação de protecção eterna. Por pior que a vida esteja, o sorriso trás-me de volta e prevejo sempre algo de bom no amanhã, mesmo quando me sobressalto com a possibilidade de "hoje ser o último".

E sorriu, mesmo quando choro, porque é inevitável!